terça-feira, 21 de agosto de 2007

O anjo da Documenta
Obras do século XIV até à actualidade formam a 12a edição da Documenta de Kassel, Alemanha, uma das mais relevantes exposição de arte contemporânea do mundo.
• A 12a Documenta de Kassel, Alemanha, pode ser lida a partir de uma das obras que são incluídas na exposição, uma cópia de Angelus Novus (1920), de Paul Klee que tem uma história e significados associados a Walter Benjamin. Pese embora o facto deste não ser o trabalho original - e aqui entram todas as reflexões do ensaísta alemão acerca da perda de aura do objecto artístico -, esta obra contém uma possível chave de leitura para uma das mais opacas edições desta mostra mítica, que se realiza, desde 1955 - a partir de 1972, de cinco em cinco anos -, numa cidade 80% destruída durante a II Guerra Mundial.
Numa das suas teses sobre o conceito de história, a nona, Benjamin sublinha que o Anjo da História deve ter o aspecto do desenhado por Klee: "Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma única catástrofe, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar, para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas
suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval." (tradução de João Barrento).
As peripécias de uma obra
A história de Angelus Novus é plena de peripécias. Em 1921, Benjamin adquire a aguarela, que havia sido realizada no ano anterior, por Klee - cuja afirmação "enquanto artista místico e afastado do mundo" acontece durante este período, vivido em Munique. Nos meses seguintes à compra, a obra permanece nesta cidade, na casa de Gershom Scholem, filósofo judaico e estudioso da cabala, que um dia afirmou: "Se se pode falar do génio de Walter Benjamin, ele estava concentrado neste anjo." O autor do Livro das Passagens leva consigo o pequeno trabalho (31.8 x 24.2 cm) para Berlim. Anos rnais tarde, em 1932, Benjamin coloca a hipótese de suicidar-se e de, em herança, deixar a pintura a Scholem. Quando emigra para França, em 1935,o filósofo leva consigo o Angelus Novus, deixándo-o

JRetaJce with Evidente (2007) com Harvey KeiteL Projected Film
à guarda do escritor George Bataille, na Biblioteca Nacional de Paris, antes da partida para os Pirinéus, em 1940, na tentativa de escapar às tropas nazis - a fuga culminará com a sua morte (suícidio?), a 27 de Setembro, em Portbou. No fim da II Guerra Mundial, a obra viaja para os Estados Unidos, ficando na posse de outro filósofo, Theodor W. Adorno, um dos nomes mais significativos da Escola de Frankfurt. Hoje, este trabalho está no Museu de Israel, em Jerusalém, doado pela viúva de Scholem.
A questão que se coloca é a de saber as razões da inclusão da cópia de Angelus Novus, uma aguarela datada de 1920, numa exposição habitualmente centrada na abordagem retrospectiva e, por vezes, prospectiva, das tendências mais relevantes da arte contemporânea. Atente-se melhor nas escolhas realizadas pelos comissários da Documenta, o casal Roger M. Buergel e Ruth Noack, nomeadamente as apresentadas no Schloss Wilhelmshõhe, uma das
sedes da mostra, para se perceber o alcance desta opção. Ali, misturadas entre as colecções de arte antiga do museu - Rembrandt, Tiziano, Rubens, Poussin Cranach, etc. - são reveladas não só algumas obras realizadas num passado recente, com destaque para Bi Dorado (2007), de Danica Daki e as pinturas da série TheLostBoys (1993), de Kerry James Marshall, mas também desenhos (séculos XIV - XVI) dos Berlin Saray Albums (DiezAlbums), compilados pelo embaixador prussiano em Constantinopla Heinrich Friedrich von Diez entre 1786 e 1790, uma caligrafia datada de 1573, elaborada por Haddschi Maqsud At-Tabrizi; a caligrafia seiscentista, proveniente do Norte da índia, "Um jovem místico sufi lê em voz alta para o seu mestre espiritual"; ou um padrão decorativo para produtos artesanais elaborado, em 1835, pelo japonês Katsushika Hokusai, conhecido pelas suas representações do Monte Fuji.
Os exemplos sucedem-se nos outros espaços expositivos: um tapete do noroeste do Irão (início do século XIX), na documenta-halle; outro do Tajiquistão, da mesma época, no Aue-Pavillion; um postal com a reprodução da
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Migração de formas
É o próprio Walter Benjamin que, numa carta datada de 1923, escreve: "Aquilo que me preocupa é a questão da relação das obras de arte à realidade histórica. A este propósito, se há uma coisa da qual estou certo, é que não há história da arte." O filósofo concebe os objectos artísticos como "a-históricos", porque se manifestam na sua interpretação. Desta realidade resulta o aparecer entre as obras de "correlações que, apesar de subtraídas ao tempo, não deixam de, por isso, ser desprovidas de pertinência histórica." Mosès aponta ainda que, segundo esta concepção, a lei da sua sucessão é imprevisível, "uma obra de arte nunca pode ser deduzida daquelas que a precedem"; pelo contrário, continua, "cada grande obra aparece no mundo como qualquer coisa de radicalmente nova, de modo que nenhum conhecimento do presente, o mais completo que seja, permite predizer a natureza das grandes obras de arte de amanhã."
Há portanto uma "migração de formas" que atravessa esta edição da Documenta: dos padrões de Hokusai para River (1964), de Agnes Martin, ou dos tapetes orientais para as pinturas tântricas, inspiradas nos mandalas tibetanos, de John McCracken, criadas no Outono de 1971 após o psicadélico summer oflove. Essa época, onde vigorou oflowerpower, tem ressonâncias noutras peças da exposição: dos coloridos trabalhos de Poul Cernes, realizados na década de sessenta, ao campo de papoilas semeado por Sanja Ivekovi, na Friedrichplatz, diante do Museu Fridericianum. Há i outras linhas de força, por vezes confluentes, a realçar na mostra, como a feminista - com importantes trabalhos de Eleanor Antin, Mary Kelly, Martha Rosler, Lili Doujourie -; a política - destacando-se os trabalhos fotográficos de David Goldblatt, Andrea Geyger, Ahlam Shibli, Guy Tillim, Zoe Leonard e Lidwien Van de Ven, e a instalação TheLightningTestimonies, de Amar Kanwar -; e uma outra, rizomática, feita de cordas, cabos, fios, redes - das guitarras eléctricas da instalação Black Choras plays Lyrics, de Saâdane Afif ao vídeo-bondage ovely Andrea, de Hito Steyerl,
Ai Weiwei, que espalhou pela mostra 1001 cadeiras da dinastia Qing (1644-1911) e convidou outros tantos conterrâneos para visitarem Kassel; Shipwreck and workers, de Allan Sekula, que permite a descoberta do notável Bergpark Wilhelmshõhe; a instalação IHate, de Imogen Stidworthy; e o filme Retakewith Evidence, de James Coleman - um monólogo de 46 minutos protagonizado por Harvey Keitel, que pergunta: Why am Ihere? What is real life?.
No fim, as perguntas - "É a modernidade a nossa antiguidade?", "O que é a vida nua?" e "O que há a fazer?" - que estiveram na base do trabalho de pesquisa para esta documenta podem ficar sem resposta. Contudo, há sempre uma saída, talvez silenciosa, dissimulada por detrás dos objectos expostos: "Tudo aquilo que, no passado, tanto pessoal como colectivo, faltou, fracassou ou não foi atingido, pode ser reparado no presente, da mesma forma que tudo aquilo que foi esquecido pode ser trazido à memória", escreve ainda Stéphane Mosès a propósito das Teses sobre o conceito de história, de Benjamin. E acrescenta: "Esta possibilidade de 'salvar' o passado a partir do presente é dado tanto àqueles que escrevem a história como àqueles que a fazem." O Angelus Novus está em Kassel para nos lembrar dessa hipótese de que o futuro pode ser "vivido desde hoje, pela imaginação, a utopia ou a acção antecipadora."
12a Documenta de Kassel.
Todos os dias, das Wh às 20h. Tel: 00495617072782. Até23 de Setembro.
pintura UExposition Universelle (1867), de Édouard Manet, na Neue Galerie, etc. A resposta para estas inclusões pode ser obtida a partir do pensamento de Benjamin., que formula a crítica da ideologia do progresso histórico nas notas preparatórias às suas Teses sobre o conceito de história. Como nota Stéphane Mosès, em UAnge de 1'Histoire (Éditions Gallimard, 2006), o ensaísta alemão "sublinha a ideia de que o tempo histórico não deve ser concebido como uma linha contínua, mas como uma justaposição descontínua de instantes em que cada um é portador de uma 'fraca carga messiânica'." Mosès, adiante, volta a aprofundar esta tese benjaminiana: "Este tempo não pode ser descrito como uma linha contínua sobre a qual os acontecimentos se seguiriam e se encadeariam num movimento contínuo de acumulação; é necessário antes imaginá-lo como um fio por vezes rompido, feito de momentos qualitativamente diferentes e dos quais não podemos fazer a soma." - a ideia deleuziana de 'pli', prega, ecoa nesta formulação.
passando pela performance Floor qf theforest, de Trisha Brown - as peça; de Sheela Gowda e Mira Schendel, também podem ser incluídas neste núcleo.
Why am Ihere?
Numa Documenta desigual, onde os nomes citados convivem com outros menos estimulantes - e o Pavilhão Aue, espaço expositivo construído, para a ocasião, diante da Orangerie, segundo um projecto da dupla Lacaton & Vassal constitui um dos aspectos negativos da exposição, pois ali a circulação é confusa, e as obras sofrem de problemas de legibilidade, devido a uma descuidada montagem -, há alguns artistas que devem ser destacados pela singularidade e alcance das suas propostas. Uma primeira escolha incluiria o Electric Dress (1956), de Tanaka Atsuko; as esculturas de Charlotte Posenenske, realizadas em 1967; as peças de John McCracken (de 1971 a 2007); a pintura Betty (1977), de Gerhard Richter; os trabalhos de Gerwald Rockenshaub; o Fairytale, do chinês
Migração de formas
É o próprio Walter Benjamin que, numa carta datada de 1923, escreve: "Aquilo que me preocupa é a questão da relação das obras de arte à realidade histórica. A este propósito, se há uma coisa da qual estou certo, é que não há história da arte." O filósofo concebe os objectos artísticos como "a-históricos", porque se manifestam na sua interpretação. Desta realidade resulta o aparecer entre as obras de "correlações que, apesar de subtraídas ao tempo, não deixam de, por isso, ser desprovidas de pertinência histórica." Mosès aponta ainda que, segundo esta concepção, a lei da sua sucessão é imprevisível, "uma obra de arte nunca pode ser deduzida daquelas que a precedem"; pelo contrário, continua, "cada grande obra aparece no mundo como qualquer coisa de radicalmente nova, de modo que nenhum conhecimento do presente, o mais completo que seja, permite predizer a natureza das grandes obras de arte de amanhã."
Há portanto uma "migração de formas" que atravessa esta edição da Documenta: dos padrões de Hokusai para River (1964), de Agnes Martin, ou dos tapetes orientais para as pinturas tântricas, inspiradas nos mandalas tibetanos, de John McCracken, criadas no Outono de 1971 após o psicadélico summer oflove. Essa época, onde vigorou oflowerpower, tem ressonâncias noutras peças da exposição: dos coloridos trabalhos de Poul Cernes, realizados na década de sessenta, ao campo de papoilas semeado por Sanja Ivekovi, na Friedrichplatz, diante do Museu Fridericianum. Há outras linhas de força, por vezes confluentes, a realçar na mostra, como a feminista - com importantes trabalhos de Eleanor Antin, Mary Kelly, Martha Rosler, Lili Doujourie -; a política - destacando-se os trabalhos fotográficos de David Goldblatt, Andrea Geyger, Ahlam Shibli, Guy Tillim, Zoe Leonard e Lidwien Van de Ven, e a instalação The Lightning Testimonies, de Amar Kanwar -; e uma outra, rizomática, feita de cordas, cabos, fios, redes - das guitarras eléctricas da instalação Black Choras plays Lyrics, de Saâdane Afif ao vídeo-bondage ovely Andrea, de Hito Steyerl,
Ai Weiwei, que espalhou pela mostra 1001 cadeiras da dinastia Qing (1644-1911) e convidou outros tantos conterrâneos para visitarem Kassel; Shipwreck and workers, de Allan Sekula, que permite a descoberta do notável Bergpark Wilhelmshõhe; a instalação IHate, de Imogen Stidworthy; e o filme Retakewith Evidence, de James Coleman - um monólogo de 46 minutos protagonizado por Harvey Keitel, que pergunta: Why am Ihere? What is real life?.
No fim, as perguntas - "É a modernidade a nossa antiguidade?", "O que é a vida nua?" e "O que há a fazer?" - que estiveram na base do trabalho de pesquisa para esta documenta podem ficar sem resposta. Contudo, há sempre uma saída, talvez silenciosa, dissimulada por detrás dos objectos expostos: "Tudo aquilo que, no passado, tanto pessoal como colectivo, faltou, fracassou ou não foi atingido, pode ser reparado no presente, da mesma forma que tudo aquilo que foi esquecido pode ser trazido à memória", escreve ainda Stéphane Mosès a propósito das Teses sobre o conceito de história, de Benjamin. E acrescenta: "Esta possibilidade de 'salvar' o passado a partir do presente é dado tanto àqueles que escrevem a história como àqueles que a fazem." O Angelus Novus está em Kassel para nos lembrar dessa hipótese de que o futuro pode ser "vivido desde hoje, pela imaginação, a utopia ou a acção antecipadora."
12a Documenta de Kassel.
Todos os dias, das lOh às 20h. Tel: 00495617072782. Até23 de Setembro.
pintura UExposition Universelle (1867), de Édouard Manet, na Neue Galerie, etc. A resposta para estas inclusões pode ser obtida a partir do pensamento de Benjamin., que formula a crítica da ideologia do progresso histórico nas notas preparatórias às suas Teses sobre o conceito de história. Como nota Stéphane Mosès, em UAngede 1'Histoire (Éditions Gallimard, 2006), o ensaísta alemão "sublinha a ideia de que o tempo histórico não deve ser concebido como uma linha contínua, mas como uma justaposição descontínua de instantes em que cada um é portador de uma 'fraca carga messiânica'." Mosès, adiante, volta a aprofundar esta tese benjaminiana: "Este tempo não pode ser descrito como uma linha contínua sobre a qual os acontecimentos se seguiriam e se encadeariam num movimento contínuo de acumulação; é necessário antes imaginá-lo como um fio por vezes rompido, feito de momentos qualitativamente diferentes e dos quais não podemos fazer a soma." - a ideia deleuziana de 'pli', prega, ecoa nesta formulação.
passando pela performance Floor qf theforest, de Trisha Brown - as peça; de Sheela Gowda e Mira Schendel, também podem ser incluídas neste núcleo.
Why am Ihere?
Numa Documenta desigual, onde os nomes citados convivem com outros menos estimulantes - e o Pavilhão Aue, espaço expositivo construído, para a ocasião, diante da Orangerie, segundo um projecto da dupla Lacaton & Vassal constitui um dos aspectos negativos da exposição, pois ali a circulação é confusa, e as obras sofrem de problemas de legibilidade, devido a uma descuidada montagem -, há alguns artistas que devem ser destacados pela singularidade e alcance das suas propostas. Uma primeira escolha incluiria o Electric Dress (1956), de Tanaka Atsuko; as esculturas de Charlotte Posenenske, realizadas em 1967; as peças de John McCracken (de 1971 a 2007); a pintura Betty (1977), de Gerhard Richter; os trabalhos de Gerwald Rockenshaub; o Fairytale, do chinês

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